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Crianças francesas têm TDAH?

  • Foto do escritor: Henrique Dumay
    Henrique Dumay
  • 3 de jan. de 2020
  • 3 min de leitura

O que a ciência tem a dizer sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e como uma falácia metodológica perpetuou infundados preconceitos e prejudicou toda uma geração.

Se você chegou aqui somente em busca da resposta ao título do texto, a resposta é "sim, crianças francesas também têm TDAH", mas me permita explicar.


Talvez todos nós já tenhamos visto posts em redes sociais com os dizeres "crianças francesas não têm TDAH" ou que "o TDAH é uma invenção dos americanos". Será mesmo que na França não existe TDAH? Para responder a esta pergunta, o professor e pesquisador brasileiro Guilherme Polanczyk realizou um trabalho com grande rigor metodológico no qual comparou 171.756 crianças de todas as regiões do mundo, o qual se tornou um dos artigos sobre a prevalência de TDAH mais citados no mundo. A questão a ser respondida era se o diagnóstico seria resultado de uma cultura ocidental permissiva sem validação em diferentes sociedades.


A conclusão do estudo, para infelicidade dos franceses, foi que a grande variabilidade na prevalência do transtorno devia-se especificamente à diferença da metodologia empregada nos estudos. Mais, mostrou que a prevalência mundial do transtorno era de 5,29% e que não havia diferenças significativas entre crianças norte-americanas, europeias, latino americanas e asiáticas. Esta mesma conclusão já tinha sido proposta pelo pesquisador Stephen Faraone do Departamento de Psiquiatria da Harvard Medical School, que afirmou que a prevalência de TDAH é, no mínimo, tão alta em crianças não americanas como em crianças americanas e que as discrepâncias apontadas anteriormente referiam-se a diferenças metodológicas.


Certo. Há consistência no diagnóstico, mas como, então, ele acontece? Felizmente, talvez seja o transtorno psiquiátrico que mais tenhamos dados robustos para discutir. Comecemos pela influência genética, considerada de herança multifatorial, ou seja, que necessita tanto da participação dos genes quanto da exposição a fatores ambientais. A contribuição genética no TDAH é substancial, estando entre as mais altas para os transtornos psiquiátricos e os estudos com gêmeos mostram que pais de crianças com TDAH tem um risco 2 a 8 vezes maiores de ter o transtorno. Então um estudo genético poderia determinar a existência ou o risco de TDAH? Ainda não. Acredita-se que o transtorno seja resultado da influência de muitos genes de pequeno efeito e, ainda, da interação desses genes entre si e dos genes com o ambiente. Entre os fatores ambientais, podemos citar a exposição intrauterina à nicotina como um dos fatores mais consistentes associados ao TDAH. Uma boa revisão sobre as causas do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade pode ser encontrada aqui.

Os estudos de neuroimagem estrutural mostram uma redução do volume do cérebro e cerebelo entre 4 e 5% em crianças e adolescentes com TDAH, havendo redução em diversas estruturas cerebrais. Importante estudo conduzido pelo Dr. Philip Shaw mostrou que há um atraso no desenvolvimento cortical de adolescentes com TDAH, representado por uma medida de espessura cortical. O gráfico demonstra a diferença entre a espessura cortical encontrada em indivíduos com TDAH e indivíduos com desenvolvimento normal. Centenas de outros estudos trouxeram luz a várias alterações encontradas em indivíduos com TDAH., mas, se temos tantos estudos que mostram explicações neuropsicológicas, comportamentais, estruturais e funcionais para o transtorno, por que as pessoas insistem em dizer que ele não existe?


A luz da ciência, não dá mesmo para explicar, mas precisamos, ainda, falar das consequências do TDAH sobre o desenvolvimento. Entenda que isso não se aplica a um caso individual, mas é percebido em nível populacional. Do ponto de vista cognitivo, estudos mostram que o transtorno implica em uma dificuldade crônica em executar uma série de tarefas diárias devido ao impacto sobre diferentes funções executivas. O transtorno é acompanhado, ainda, por dificuldades de controle emocional, problemas de humor e irritabilidade. Estudos apontam, ainda, para problemas de coordenação motora e no desenvolvimento motor. Mas o que mais chama atenção são as consequências sociais, como insucesso escolar (ou um termo mais forte, como fracasso acadêmico), maiores taxas de perda de emprego, reduzida produtividade, uso de drogas, entre outros.

Muitos defendem que há um sobrediagnóstico e que os médicos medicam demais. Minha opinião é que, de fato, pode ocorrer nos estratos populacionais mais altos, cuja demanda sobre os filhos seja excessiva e vá além da medicação, como hiperestimulação precoce, altos níveis de cobrança parental e exigência de sucesso acadêmico. Entretanto, o que mais ocorre é um subdiagnóstico, uma grande parcela da população que não tem acesso ao diagnóstico e ao tratamento e ficam suscetíveis àquelas consequências apresentadas no parágrafo anterior, condenadas a integrar um grupo que tem risco aumento de desfechos tão ruins e, na maior parte, evitáveis. Então, quando te disserem que crianças francesas não têm TDAH, não acredite, está bem? O TDAH existe e tem tratamento. Como um professor certa vez me disse, a magnitude de efeito do tratamento do TDAH é comparável ao óculos para um míope. E você, míope, consegue ficar sem óculos?


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